O ponto de partida deste projeto é uma série de 20 cartazes educacionais impressos na década de 70 e utilizados por minha mãe enquanto professora na rede pública de ensino nos anos 80 e 90.
Utilizando conceitos e procedimentos do método Paulo Freire de alfabetização, os cartazes foram base para uma série de encontros diários com um grupo de analfabetas, durante um mês. O percurso das conversas de cada dia se tornava pauta fotográfica para novos cartazes criados por mim que voltavam para as conversas, criando uma espécie de engrenagem artístico-educacional.
Ao fim deste processo, o trabalho se apresenta como um painel de 60 cartazes de ontem e de hoje, que mesclam vários tempos históricos – 64, 71, 80, 90, 2010. Esta coleção final se descola do processo que a gerou podendo ser lida segundo o repertório do espectador, seja como uma enciclopédia fotográfica, um arquivo de crônica nacional, ou ainda um plano educador revisado, contraditório e ampliado.
O método Paulo Freire de alfabetização aliava escolarização com formação de consciência. Uma primeira experiência foi aplicada com 5 trabalhadores analfabetos dos quais 3 aprenderam a ler e escrever em 30 horas. Paulo Freire foi convidado pelo governo de João Goulart a organizar a Campanha Nacional de Alfabetização, que objetivava alfabetizar 2
milhões de pessoas em 20mil círculos de cultura. O Golpe Militar de 64 interrompeu o projeto, reprimiu a mobilização, e Paulo Freire foi perseguido, preso e exilado. O regime militar substitui o plano pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização, que propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos.
O Brasil está sob regime militar desde 64 e Paulo Freire está exilado. Em 71, cartazes para educação de adultos são vendidos nas bancas como material didático. Entre 70 e 90, minha mãe trabalha com eles como professora na rede pública. Em 2006, ela se aposenta, se desfaz dos cartazes, e eu os guardo comigo. Pesquiso um pouco e descubro que carregam uma estrutura parecida aos cartazes do método Paulo Freire – uma imagem e uma palavra que partem do universo vocabular do aluno. Vejo que o método era bastante aberto, que se tratava de dimensionar politicamente a existência do outro; que se propunha concreto somente na prática; que não era preciso ser pedagogo para aplicá-lo. Pensei então em retomar os cartazes como ponto de partida para conversas com analfabetos de hoje, e a partir do que viesse à tona, fazer novos cartazes com novas imagens e novas palavras que retornariam para as conversas completando uma espécie de engrenagem. Talvez o projeto pudesse ser uma experiência de método Paulo Freire que experimentasse achatar os vários tempos históricos envolvidos – 64, 71, 80, 90, 2006, 2010 – num só plano. Talvez se apresentasse como um plano educador revisado, contraditório e ampliado. Fui a associacoes de lavadeiras e costureiras e encontrei um grupo de 6 mulheres que não sabiam ler e escrever e passamos a nos encontrar todos os dias após o almoço, durante o mês de agosto.
… embora o papel de provocador naquele momento esteja devolvido para mim, sinto um desconforto em estimular uma sensibilização de uma condição de oprimido sem ter exatamente uma convicção de como encaminhar para uma organização libertária. É uma experiencia, e trago o método sem saber o quanto esta sensibilização politica pode ser alcancada, em que medidas ela é mesmo prática da liberdade. O projeto toma emprestado um fôlego utópico de outro tempo histórico, entretanto, em momentos como este, a utopia se revela desajustada, um corpo estranho em ação. Assim, me sinto desautorizado a estimular um despertar de insatisfações adormecidas diante de um mundo em que tudo é tão cruamente pautado em favorecidos e desfavorecidos; em uma história de manutenção de poder em que não tenho clareza o quanto sou massa ou protagonista. Opressão e liberdade riscam faísca ali não exatamente de luta, mas de retomada de poder no sabor sobre a própria vida, no reconhecimento de um corpo autorizado a se mover na contradição. Percepção crítica não pode ser imposta, e talvez a grande horizontalidade que aconteça é que tudo que vem à tona é o que já existe na experiencia de vida delas e minha, e que é potencializado pelo nosso encontro. Para experimentar uma troca de fato, é preciso lançar mão de um despudor nas provocações que vão na conversa ou para o quadro, um risco na escolha das palavras. Esta urgência também vai para a feitura das fotos, mas é uma negociação delicada; envolve convidar as pessoas a serem atores sociais de uma representação desfavoravel de si mesmas, que ora se aproxima do estigma de que fogem, ora envolve assumir o papel dos outros que evitam. É um corpo a corpo que me põe em confronto com minha própria imaturidade ética, a falta de clareza sobre até onde levar o exercício do despudor que desmonta o limite de minha zona de conforto sobre aquilo que cresci aprendendo a ler como invisível. A arte me permite experiências que seriam impossíveis enquanto somente pesquisador ou cientista social. Posso manejar tradições com mais fluidez; inventar metodologias; experimentar ficções em que posso ser ora pedagogo e pesquisador, ora fugitivo, extraditado, meliante. Parto de urgências e desconfortos cotidianos, de certa forma até pessoais, que ganham dimensão social através da experiência artistica. Com isso me tomo como uma célula geracional e o percurso do trabalho detona uma serie de contradições que me colocam diretamente em contato com o tempo que me precede, fazendo da História, da Economia e dos Problemas Nacionais entidades mais palpáveis, menos abstratas.
Fonte: http://cargocollective.com/jonathasdeandrade/educacao-para-adultos
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Curadoria e pesquisa: Ana Luiza Gomes