Para dar início à pesquisa sobre Gambiarra, o gambiólogo Hernani Dimantas responde:
O que não sabemos sobre Gambiarra?
Em primeiro lugar vamos entender o que já sabemos sobre Gambiarra. Esse termo, no dicionário, designa uma extensão elétrica. Em sentido mais amplo podemos tentar algumas aproximações: improviso, solução temporária, bricolage, desconstrução, precariedade. O termo é entendido como consequência de uma sociedade ainda não totalmente amadurecida, que não desenvolveu as estruturas apropriadas, as ferramentas adequadas, os profissionais especializados, ou mesmo, o investimento necessário para transformar projetos em realidades. Nestes casos, o improviso se torna o próprio produto.
Mas o que não sabemos?
Gambiarra pode ser entendida como ato de fazer.
William Gibson, escritor de ficção cyberpunk, diz que a rua encontra suas próprias aplicações para as coisas. Esse encontro pode ser considerado como uma ação de trabalho manual, persistente, lento e imperfeito (não homogêneo ou em série) sobre os objetos técnicos. Tais características são mesmo reivindicadas e valorizadas como parte fundamental do métier do artesão, e isso desde a era medieval: ir trabalhando aos poucos, buscando a perfeição em algo que nunca será perfeito, insistindo nas diferenças entre cada elemento de uma mesma espécie, como se assim pudéssemos aprender o espírito de cada objeto, sendo também um auxiliar do desenvolvimento do próprio espírito do artífice.
A Gambiarra e seus efeitos de apropriação, por outro lado, tem papel fundamental na sociedade da informação, aliando tecnologias de ponta com processos de trabalho artesanais. É uma prática cyberpunk pós-moderna. Essa prática distingue-se pelo traço comum da inventividade cotidiana, do improviso, da descoberta espontânea, da transformação de realidades a partir da multiplicidade de usos. O mais trivial dos objetos, lotado de usos potenciais: na solução de problemas, no ornamento improvisado, na reinvenção pura e simples. O potencial de desvio e reinterpretação em cada uso. A inovação tática, acontecendo no dia a dia, em toda parte. Desta forma, a Gambiarra passa a ser vista como um processo criativo da sociedade hiperconectada.
Os meios digitais possibilitam que os recursos tecnológicos de criação, produção, transformação e circulação de conhecimento e cultura sejam acessíveis. Pois qualquer pessoa com um computador conectado à rede e com um pouco de conhecimento e vontade de pesquisar tem a possibilidade de participar voluntariamente de um espaço cultural em movimento.
A cultura digital catapulta as atividades das pessoas comuns que passaram a usar o computador em substituição às ferramentas e meios de produção antes inacessíveis. Com a utilização de softwares é possível criar e editar arquivos de texto, de áudio e vídeos. Essas facilidades se ampliam quando passam a ser distribuídas em redes, fazendo com que as pessoas conectadas por um computador possam trocar arquivos, projetos e ideias com qualquer outra pessoa ou grupos em qualquer lugar do planeta. Esse conjunto de ferramentas cria impacto na forma que a sociedade produz.
Esse momento cultural é muito rico. Poucas vezes se escreveu tanto, se produziu tanto conhecimento quanto agora. Na internet se produz mais do que se consome. Essa produção tem como efeito a desconstrução do objeto técnico, desconstruindo ideias preconcebidas e paradigmas.
Trata da potência de todo ser humano para reinventar sua própria cultura a partir das diversas experiências e entendimentos que traduzem sentido para os atores. A invenção nasce de uma tendência a contrariar e reinventar os controles diários. Inventa-se a cultura a partir de suas próprias convenções e características por meio de associações que realizamos em nossos contextos culturais. Da mesma forma, as invenções necessitam das conversações. Elas requerem uma base de comunicação em convenções compartilhadas para que possam se referir a outros e ao mundo dos significados compartilhados.
O estado da arte da Gambiarra se desenvolve sobre processos culturais criativos que envolvem experimentação e inovação. Assim, voltamos a ideia de Gambiarra como um processo de fazer. Um conjunto de práticas sociais e comunicacionais de (re) combinações, copiar e colar que ganham folego a partir das tecnologias digitais.
Mas a Gambiarra segue além nas possibilidades de inovações culturais. É por meio dessa forma de percepção que a Gambiarra não pode ser reconhecida como atraso ou inadequação, mas sim um aviso e um apelo ao mundo: desenvolvam essa habilidade essencial e a sensibilidade que ela exige em relação a objetos e usos. Não alienem a criatividade! Não acreditem nas estruturas do mundo ocidental que querem transformar a criatividade em nada mais que um setor da economia, restrito e regulamentado.
A Gambiarra aparece como um dispositivo de substituição ao engessamento provocado pela propriedade intelectual. É a substituição do produto original por um improviso ou precariedade que resulta em uma experiência de uso muito semelhante à proposta do uso original.
É também fundamental questionar o uso de um referencial da Gambiarra como mero instrumento de renovação estética, sem tratar desse aspecto importante de entender a criatividade como processo distribuído e transformador. A Gambiarra não pode ser mero ornamento formal para ocupar galerias de arte. A ideia está na potência para reinventar a cultura, A Gambiarra precisa ser legitimada, perder a aura de atraso e envolver cada vez mais gente na perspectiva de criatividade tática. Não é um elogio à precariedade, ao que está abaixo do ideal, ao que está aquém.
É nesse sentido que a Gambiarra faz sentido na apropriação da tecnologia para a transformação social.
Hernani Dimantas (São Paulo, SP, 1960) é Artista. Escritor. Metarecicleiro e Gambiólogo. Doutor pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Autor dos livros: Linkania: uma Teoria de Redes (2010) e Marketing Hacker (2003), além do Zonas de Colaboração – conversas da Metareciclagem (Senac – no prelo).
(Imagem do artista Cao Guimarães).