A nossa terceira contribuição para o tema Acre é do Janu Schwab, alguém que pode falar bastante sobre andanças no país (veja biografia no final do texto):

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Sim. Ele existe.  

O acre não existe. Tenho certeza que a cada vez que essa frase é proferida, um acreano inventa um novo xingamento. Matruspício, prizimâncio, viliquengo, escrafobúcio, tudo para colocar o interlocutor no seu devido lugar, pois quem é do Acre não costuma levar esse desaforo para casa em silêncio.

Poucos são aqueles que ao ouvir o nome “Acre” não soltam uma risadinha marota, seguida de perguntas que todo acreano odeia ouvir: Você anda de cipó? Você tem uma onça de estimação? Você já viu o Tarzan? Poucos são os acreanos que ouvem isso e não se enfurecem.

O Acre é terra de gente enjoada. Diga você que o Acre não existe e o acreano, além de um novo xingamento, desmonta a piada com todos os argumentos existentes no glossário do ufanismo brasileiro. Somos o pulmão do mundo, o único estado do Brasil que lutou para ser brasileiro, o melhor lugar para se viver da Amazônia etc.

Se você vai de avião, chegar ao Acre vai lhe custar uma nota preta e três horas de vôo partindo de Brasília. Rio Branco, a capital, costuma receber os visitantes com o típico sol de rachar moleira ou a típica chuva de encharcar a alma. Com sorte se pega sol e chuva no percurso do aeroporto até o centro. Essa dobradinha climática é responsável pela umidade relativa do ar beirando os noventa por cento e pela sensação de sauna que faz você suar bicas não importa a hora.

Sombra, aliás, costuma faltar. Apesar de estar onde está, as cidades do Acre sofrem com a falta de árvores. É irônico, pois ao longo horizonte se vê o mar verde de mais de trinta mil espécie que compõe a flora amazônica, enquanto as ruas e calçadas seguem nuas. O acreano de hoje até gosta da floresta, mas de longe.

Cearenses e potiguares formam o grosso da gente do Acre, que insiste em grafar-se acreano ao invés do ortograficamente correto, acreano. É sério! Como todo retirante do Nordeste, os que foram dar no Acre, vieram fugidos da seca e atraídos pela ladainha do ouro branco, como era conhecido o látex durante o ciclo da borracha. Os nordestinos viraram seringueiros.

Anos atrás, se você queria depreciar alguém, o chamava de seringueiro. “E essa roupa mulambenta, aí, doido? Tá parecendo um seringueiro”, ouvia-se. Hoje, décadas de ostracismo depois, o seringueiro é chamado de soldado da borracha, condecorado com medalha e agraciado com uma pensãozinha.

Sim, temos índios. E de todas as cores. Jaminawa, Kaxinawá, Kulina, Yawanawá, Apurinã, entre outros. Mas sírios e libaneses, paulistas, paranaenses, catarinas e gaúchos também compõem a ascendência do acreano e trouxeram com eles kibes, kaftas, o dom do comércio, a pecuária e até um CTG – ah, esses gaúchos!

O acreano, que trata todo mundo por “maninho”, quando quer se divertir, ouve e dança forró, arrocha, rock’n’roll e um pouquinho de carimbó – se você ainda não ouviu Los Porongas, Filomedusa, Rebeca Bá & Os Fridas, Caldo de Piaba, devia.  O sertanejo universitário impera. O brega também. Os mais velhos vão à Saudosa Maloca, tradicional casa pé-de-valsa que põe todo mundo para dançar ao som de Rubens & Etinildo, a dupla que já é um clássico da noite.

Os mais jovens vão a baladas com nomes pomposos. Loft, Studio Bar, Posh, Le Napoleon e Facebook. Sim, um empresário de Brasiléia, cidadezinha colada na Bolívia, pegou emprestado nome e marca da rede social de Mark Zuckberg e batizou seu empreendimento – deu até no The Guardian.

O acreano menos favorecido não fica para trás no quesito diversão e se perde de quinta a domingo em bibocas com música ao vivo. O mais emblemático deles se chama Forró do Priquitim, no bairro do Palheiral. O piseiro vara a madrugada e, para quem gosta, rende putarias mil.

Aliás, no Acre tudo acaba em baixaria, uma receita de nome jocoso que combina cuscuz, carne moída, tomate, coentro e cebolinha picados, cobertos por um ou dois ovos estrelados. Em Rio Branco é comum sair das festas e bater no Mercado do Bosque, um apinhado mal ajambrado de quiosques que vende as comidas típicas da terrinha.

Come-se bem no Acre. E fica feio não experimentar os quitutes que enchem olhos e barrigas. Além da baixaria, você precisa experimentar o mingau de tapioca e banana-cumprida – negar essa delícia é uma ofensa pior do que dizer que o Acre não existe. Cuidado: não dá para recusar o quibe de arroz ou de macaxeira, adaptação da herança libanesa. Dizer que tacacá, sopa de tucupi, folhas de jambu e camarão seco, não combina com calor, beira a heresia.

Se você conhece o Alex Atala já ouviu falar do Tucupi. Todo acreano diz que o caldo da mandioca feito no Acre, mais picante, é muito melhor do que a receita do Pará – considerada sem graça. Polêmica. Mas quando o assunto é a farinha, não tem boca: a de Cruzeiro do Sul, segunda cidade mais populosa do estado, é a melhor. Pergunte ao Rodrigo Oliveira, do Esquina do Mocotó, restaurante de São Paulo, ele é fã declarado.

É em Cruzeiro do Sul que se descobre a Serra do Divisor, paisagem montanhosa destoante do restante do Acre, onde os morrotes são cortados por rios sinuosos que escondem cachoeiras e poços de reajustar o fôlego perdido do visitante pela viagem. Qualquer busca na Internet pelo lugar vai esfregar na sua cara fotos estupendas. A região é tida como mágica.

Mas mágica mesmo é nova relação do acreano com os vizinhos andinos. Distante algumas boas horas de carro, o Perú, mais precisamente Cuzco, é atualmente o destino turístico preferido de quem mora no Acre. É curioso ver os acreanos, acostumados com um calor de encharcar o buço, extasiados (e congelados) com a neve das cordilheiras.

Para quem não vê problema em botar o pé na estrada, comer um pouco de poeira, ser cozido por um verão eterno ou engolido por chuvas torrenciais e fugir do lugar comum quando o assunto é turismo, o Acre é um ótimo lugar para ir. Quem escolhe conhecer o estado não sai incólume. É impossível não compreender um pouco mais sobre o Brasil depois de pisar naquelas terras.

O Acre é lindo. Toda vez que essa frase é dita por um forasteiro, o acreano, desconfiado de nascença, abre um sorriso. E cata todos os adjetivos positivos existentes no vocabulário para ajudar a definir quem rompe preconceitos e enxerga as belezas de um terra sofrida, mas cheia de si. De todos não há coisa melhor do que ser chamado de “acreano de coração”.

Janu Schwab é publicitário e mora em São Paulo. Filho de acreano do pé-rachado, nasceu em Porto Alegre, mas mudou-se com a família para o Acre ainda pequenininho, de onde só saiu depois de adulto. Desde então visita a terrinha ao menos uma vez por ano.  

Nota do autor: mesmo sendo considerada incorreta pelo Novo Acordo Ortográfico da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a grafia do gentílico “acreano” com e, contra a “acriano” com i, é defendida até hoje como uma causa cívica e cultural pelo povo do Acre. Portanto, quem nasce, vive ou ama o Acre é acreano. E fim de papo.

(Por Mayra Fonseca. Ilustra o post a obra de Lucie Schreiner)