O professor e designer gráfico Bento de Abreu nos responde com esse belo texto, FRONTEIRAS DO PAMPA:
O cenário é de culturas duplas, de vocabulários híbridos, de fronteiras. E esta característica nos coloca num contexto de influências, de misturas, de aproximações e de diferenças, que se torna impossível não pensarmos sobre tudo o que implica a proximidade com esse outro, tão diferente / tão próximo, a ponto dessas relações de troca se tornarem naturais e se afetarem mutuamente.
Não raro, esse entrelaçamento cultural influencia ambos os lados na forma de ver e sentir o mundo, contaminando determinadas expressões da fala, da escrita, do modo de vestir, dos gostos musicais e aspectos da gastronomia. Para expressar essa troca provocada pelas diferentes culturas, Canclini (2005, p. 17) trabalha com os conceitos de interculturalidade e multiculturalidade, dizendo que isto “remete à confrontação e ao entrelaçamento, aquilo que sucede quando os grupos entram em relações e troca”.
Diferente de outros lugares em que uma rua, uma praça ou uma estrada definem a situação de fronteira, neste região é o rio quem delimita os territórios. A água faz parte da paisagem, unindo as duas “barrancas”, de onde é possível avistar um outro lado, um lado de lá a ser descoberto, um outro território que está além e que extrapola os limites da cidade do lado de cá. No outro lado do rio, o território é estrangeiro. Uma outra língua, uma outra cultura, um outro jeito de falar e de olhar a partir da margem esquerda do rio. Nesse contexto, as pontes tem um papel importante na relação dessas culturas híbridas. A ponte ligando esses dois mundos, como meio de acesso entre as terras estrangeiras, como caminho, como união, como possibilidade de ir e vir, como um indício de que há possibilidade de continuar, de descobrir outros mundos, de vivenciar outras experiências.
Do lado brasileiro a cidade é Uruguaiana, localizada na fronteira oeste do Estado do Rio Grande do Sul, distante 640 km da capital, Porto Alegre. Ela tem como seu espelho a cidade argentina Passo de Los Libres, a poucos quilômetros da fronteira com o Uruguai. “Los Libres” como é chamada pelos brasileiros, sugere significados para quem nasce e cresce olhando para esse outro lugar, que em português poderia se chamar Passagem dos Livres.
O comércio em ambos os lados sempre é tema das conversas, no sentido de saber qual produto está com o preço mais em conta do outro lado. O ir e vir é constante e as pessoas só param em momentos de tomar o chimarrão, que tanto pode ser bebido solitariamente ou em grupo, nas tradicionais rodas de chimarrão, sejam elas nas fazendas ou nas residências urbanas. É um ritual que diariamente reúne as pessoas que convivem, tanto em função das relações familiares ou profissionais. Não raro, principalmente aos domingos, as rodas de chimarrão são animadas por músicos, que com instrumentos característicos daquela região (sanfona e violão) executam milongas, xotes e rancheiras.
Em oposição ao rio e ao território estrangeiro, o pampa é formado por uma vasta planície verde, onde o olhar se perde e só pára quando se depara com o verde mais escuro dos eucaliptos, que podem estar em grandes grupos ou solitários, assim como os homens que se dedicam às atividades campeiras. Nessa paisagem de pequenos deslumbres, o canto do quero-quero pode estar anunciando alguém que se aproxima ou o começo de um novo dia. O rádio de pilha toca uma música em “castelhano”, as pessoas se saúdam com a expressão “buenas”.
(Quem nos colocou em contato com o Bento de Abreu foi a querida Elizabeth Brose. Ilustra o post a imagem do fotógrafo Leonid Streliaev. Por Mayra Fonseca)