Cecília Pellegrini é diretora da Associação Cultural do Morro do Querosene.
Com fala doce, e firme, disse por telefone que eu deveria participar do evento do Parque da Fonte, no domingo. Quando cheguei, falou que era pra eu entrar no parque e ver as nascentes. Depois, subiu no palco pra se juntar à Orquestra de Berimbaus e encantar a minha noite de lua cheia.
Na segunda-feira, às 21:00 horas, ela trabalhava com um grupo de jovens em sua casa e me pediu pra esperar porque eles tinham coisas da comunidade para resolver. Alguns minutos depois e ela nos ouviu com carinho; e falou com brilho nos olhos.
“O Dinho até tem uma música que se chama Querosene Blues. Ele diz que é uma ilha. Porque aqui não tem arranha-céu. É uma ilha no meio de uma cidade que tem muitos arranha-céus. Aqui é uma cidade de interior. Aqui é quase uma zona rural. Aqui as pessoas se cumprimentam, se conhecem, caminham pela rua, sentam na calçada.
O Morro do Querosene é um certo mistério.
O que eu acho que todo mundo poderia saber é que os Incas estiveram no Brasil. Por que a gente não sabe?
Eles passavam por aqui. Não só eles, isso que é interessante. Porque o Peabiru era uma malha de caminhos que cruzava todo o continente.
Eu li que o caracteriza uma cidade é o adensamento. Os sítios vão ficando menores, mais próximos. Você percebe quando a cidade está chegando porque vai adensando até chegar naquele lugar onde houve troca, onde as pessoas levavam as suas mercadorias: uma cidade. Então, olhe que coisa curiosa. São Paulo não se caracteriza por ter tido fazendas, chácaras, sítios e trocas de alimentos. Ela se caracteriza pelo encontro, pelo comércio, pelos eventos.
Aqui, a Vila Pirajussara, já era um ponto de encontro de trilhas. Então os índios já se encontravam aqui. E, imagine no império Inca, como um povo imperialista ficaria só lá?
São Vicente é a primeira cidade portuguesa do Brasil. Por que São Vicente? Por que não Salvador, Porto Seguro? Você imagine quão antiga é essa região. Data do ano 1000.
Eu não consigo pensar no Morro sendo só o Morro. Quando eu penso no Morro, na história, eu penso em todos os caminhos. Eu acho que o Morro é um polo.
Aqui é uma ocupação tão antiga que não teve loteamento, água encanada, luz. Há décadas atrás, todos os bairros ao redor já tinham luz elétrica e aqui não. Por isso, ficou Morro do Querosene.
Então aqui é um lugar meio esquisito. Mas, por outro lado, é um lugar muito especial também. É um lugar de energias fortes. Algumas pessoas daqui falam que é como um gueto. A gente é meio como uma família. É muito interessante.
Hoje eu entendo que o Morro do Querosene escreve a história de São Paulo por causa desse encontro das pessoas que vinham. As pessoas depositaram aqui suas histórias, suas informações. Porque, veja, as pessoas reclamam de São Paulo. Mas por que tem tanta gente aqui? Pelo dinheiro só não é.
Boa parte dos índios brasileiros são muito fortes e muito sensíveis. Eles percebem coisas que às vezes você nem falou. Eles são muito espiritualizados. E essa energia ficou aqui.
Quando meus filhos foram para a escola, eles estudaram o caminho das sedas. E eu fico pensando: como eles não estudaram o Peabiru? Quando você estuda o Peabiru, você vai vendo as ocupações, as cidades, a comunicação. Ele tem árvores frutíferas ao longo dele, porque os viajantes passavam, comiam as frutas e deixavam as sementes.
Eu não sei explicar o Morro do Querosene.
As pessoas começaram a me trazer fotos: você sabia que os índios Guaranis do Sul vinham aqui para se encontrar com os Incas? Eu achava aquilo estranho. Mas surgiram fotos, revistas, mapas.
Quando eu fui para a faculdade, procurar os mestres, ninguém acreditava. Mas hoje a gente entende. Olhe só o que aconteceu: a Pirajussara era tão forte que os portugueses chegaram na periferia. Pinheiros era a periferia da Vila Pirajussara. A gente descobriu um censo demográfico feito por volta de 1.700. Era chamada Vila Pirayussara, era mais populosa do que Pinheiros, mesmo só contando os brancos (não se contavam nem índios, nem negros). E não era reconhecida, por que?
Aqui, até hoje, não há igrejas, não há cadeias. Normalmente, as igrejas ocupam os pontos altos. Aqui encima, no morro, existia uma outra concepção de estado.”
Interrompeu a fala, horas depois, para buscar um pratinho pra cada uma de nós: banana da terra, bolo de milho, doce de figo.
E fui embora decidida a experimentar seu Caruru, na festa de São Cosme, que ela prepara para a comunidade com o cuidado de manter toda a tradição da celebração regional baiana.
Encantada com a ameríndia, a afrodescendente, a brasileira que vi na luz dos olhos azuis daquela senhora linda de pele clara.
(Por Mayra Fonseca. Foto Muros do Morro do Querosene por Ana Luiza Gomes, muro por D’ollynda. O tema Morro do Querosene foi feito com a ajuda de uma de suas moradoras – Bianca Oliveira – e em parceira com o projeto Levo na Mochila.)