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Adhara Luz é fundadora da AMZ Projetcs, focada em experiências de viagens criativas. Foi morar ainda bebê na Amazônia com os pais Dr. Eugênio e Márcia, fundadores da premiada ONG Saúde & Alegria, que leva medicina a mais de 70 comunidades ribeirinhas dos rios Tapajós, Amazonas e Arapiuns. Por toda essa vivência no Tapajós, ela nos responde:

O que não sabemos e deveríamos saber sobre o Tapajós?

De olhos fechados, me reconectei com o Tapajós. Vez em quando ele me chama em pensamento. Mas dessa vez eu é que fui até ele, mentalmente, pra contar aqui o meu ponto de vista sobre esse rio tão especial, que conheço desde que me entendo por gente. Senti aquela brisa própria – um ventinho leve que te abraça, natural da navegação nos barcos regionais; o balanço sutil da rede e me lembrei do panorama que se forma gigantesco: de pé, girando em torno do próprio corpo, esse é o 360 graus de visão mais vasta e abrangente que já consegui ter na vida.

Em alguns pontos, o Tapajós tem 19km de largura e sim, é como um mar, mas diferente. A água é doce, pra começar. Não há montanhas, penhascos, torres, prédios, navios, nada, absolutamente nada que te impeça de enxergar até onde sua visão alcance. No caminho do seu olhar para esse horizonte infinito, istmos do tamanhos de verdadeiras praias se formam no meio do rio, sem qualquer sinal ou pegada de seres humanos.  Ali tudo é virgem e de uma pureza tão grandiosa quanto o lugar. Nos vilarejos e comunidades ainda impera o despretensioso  “ô de casa!” seguido de três palminhas, a risada aguda das crianças e das mulheres quando cantam meio desafinadas, cheias de poesia naquelas vozes de mulher cabocla.

Minha mãe foi uma das primeiras (acho que de fato a primeira) pessoa de fora a morar em Alter do Chão, então eu fui a primeira criancinha loira no meio de um monte de curumins e cunhatãs – genética diferente mas entre nós nenhuma diferença. A simplicidade do caboclo é tão desprovida de qualquer preconceito que eu nunca cheguei a me dar conta que meu cabelo e pele eram de outra cor. Na verdade, vou além: passei a infância grudada com a minha melhor amiga, a Axé, um Macaco Aranha. Costumo brincar que como ela vivia no meio de pessoas não sabia que era uma macaca e eu, como andava com ela, não sabia que era uma pessoa. Tinha por ela o amor que se nutre por um verdadeiro amigo, aquele inesquecível da infância. Vivíamos ali, praticamente na beira do rio, inventando as melhores brincadeiras.

Quando cresci me dei conta de que o encantamento do Rio Tapajós não tem a ver apenas com a beleza e com as praias de areia branquinha que ficam meses e meses submersas sendo lavadas por suas águas. Ele é também a simplicidade das pessoas e seu modo de vida: viajar num barco, dormir na rede, comer peixe com farinha feito na brasa ali na areia mesmo, sentar na cozinha da Dona Conci e escutar sua risada, ouvir um “bem-vinda” dito com sinceridade, sem esperar nada em troca, se despir das necessidades inventadas pelo mundo “moderno”, ser humano literalmente – essa é a maior percepção que todos que visitam o lugar tem em comum.

Preparando roteiros de viagem há 4 anos, reafirmo cada vez mais esse sentimento. É unânime a paixão pela reconexão consigo mesmo que cada um dos meus viajantes relata. Impressionante. A floresta tem esse poder, de energia tão pura e tão viva que não há tristeza, baixo astral ou “inhaca” que resista.

É difícil explicar o quanto a região transmite paz e tranquilidade, em todos os sentidos. Não por acaso, Lama Ganchen Rimpoche, importante líder Budista a considera uma das áreas mais energéticas do mundo. Todo ano ele, outros mestres e sua turma vão até lá meditar, cantar, vibrar pela humanidade.

Quando entramos na mata, sentimos presença, uma sensação de estar numa festa boa mesmo estando sozinho. Difícil descrever em palavras o que toda pessoa que vai para lá consegue sentir.

Outra coisa que adoro é o nível de organização das comunidades: existe grupo e associações para quase tudo. Todo mundo tem um cargo bacana, como o coordenador do grupo de parteiras, ou da rádio por exemplo. O senso de responsabilidade e trabalho comunitário é algo que vem desde cedo. Eles organizam eventos entre comunidades, fundo de apoio às famílias, produzem e distribuem tambaqui, mel, tem cada vez mais noção de ecoturismo e há alguns anos constroem pousadas comunitárias e têm acesso à internet. Acompanham as notícias do mundo apesar da maioria deles nunca ter saído de lá. Então se responsabilizam e cuidam mutuamente uns dos outros.

Ultimamente não só as comunidades como os ambientalistas dividem uma grande preocupação sobre o impacto ambiental causado pela Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, que teve seu leilão cancelado nessa quinta-feira, dia 23, por conta de estudos ambientais que comprovam 14 impactos negativos sobre povos indígenas, dos quais 6 seriam irreversíveis. Eu fico me perguntando: que “progresso” é esse que se quer chegar?  Qual a parcela de responsabilidade de cada um de nós? Será que consumir com mais consciência amenizaria tamanha necessidade de passar por cima do meio ambiente? Eu tenho certeza: necessitamos muito mais do meio ambiente vivo do que desse “progresso” que regride.

Na minha visão a floresta é tão generosa com a gente: com suas plantas curativas, alimentos, chás medicinais, seivas de todos os tipos, cipós, palhas que viram telhados e tantos outros elementos – proporciona uma troca abundante e justa.

Há uma interação de grande respeito entre os ribeirinhos e a floresta: a forma com que eles entram nela, caminham, silenciam, passam a mão nas árvores como se estivessem fazendo carinho é muito sábia e comovente. Se há animais? Claro que há. Mas não há exatamente perigo. A cadeia alimentar ainda é muito equilibrada e os animais completamente selvagens, não se aproximam ou oferecem risco.

Algumas coisas nessa relação entre a floresta, o rio, e seu povo são absolutamente inacreditáveis como por exemplo as formigas repelente: imagina que, no meio de uma trilha de árvores gigantes e centenárias você visualiza um formigueiro tão grande que ele mais parece outra árvore grudada na maior. Então seu guia local pede para você encostar a mão naquele mar de minúsculas formigas e, feito isso, em segundos você está com a mão e metade do antebraço coberto delas! Sem levar uma única picada, você esfrega uma mão na outra e transforma aqueles insetinhos todos em repelente natural para mosquitos. É surpreendente.

O tapajós pra mim é feito disso: de surpresas. E eu vivo de surpreender as pessoas. Com sua beleza pura e estonteante e constante aprendizado.

(Texto da Adhara Luz com edição de Tutu Lombardi. Conteúdo por Mayra Fonseca. Este tema foi feito em parceria com o Viageria e com o apoio da AMZ Projects. Foto por Luis Rubião.).