Pedra salgada a do Morro da Conceição, será que se eu passar a língua sentirei o sal prazeroso, não só o que vem do mar de Iemanjá, mas também o que escorre do rosto dos sambistas? Heitor dos Prazeres, eu imagino mais, Heitor também das alegrias. Seus pés bambos, os braços na cintura das cabrochas. Abrem-se as alas da Pedra do Sal, uma pequena África dentro do Rio de Janeiro. Heitor dos Prazeres disse uma vez e não errou: não há nada mais sublime que a massa humana.
Heitor dos Prazeres existiram muito dentro de um, nunca brigavam, preferiram muito mais partilhar uma cerveja e escutar um samba juntos. Tinha o Heitor sapateiro, que assim conseguia uns trocados pelos morros. Tinha o Heitor rei do cavaquinho que compôs sambas para Noel Rosa e que deu o branco e azul para a Portela. E tinha o Heitor dos Prazeres pintor.
“As ilustrações eram o que me seduziam”. Dos Prazeres sempre teve dificuldade para ler e escrever, mas nunca para entender as cores vibrantes das ilustrações dos livros e tampouco das que começou a aplicar em sua pintura. Numa vida de altos e baixos como as ladeiras cariocas, Heitor viu-se pintando para dissolver em tinta as mágoas de um amor que morreu precoce.
E pintava somente o que existia, pois como dizia, não se sentia bem se fosse o contrário. E o que existia girando, dançando e batucando era a Pequena África, apelido que dos Prazeres deu ao Morro da Conceição. Como pode uma África pequenina dentro de outro continente? Podia e muito. Um dia o que foi a porta de entrada dos escravos virou sua casa em definitivo, onde se faziam oferendas para orixás e onde nasceu o samba urbano carioca.
Sua pintura tinha a inocência de um menino e a vibração da corda do cavaco sob um dedo experiente. O cotidiano dizia a Heitor: pinta-me bonito, como se eu fosse uma fotografia de uma época dourada e preta do samba. Assim Heitor pintava as passistas, os homens em círculos de samba, as casinhas coloridas que se aconchegavam na descida do morro. São pinturas que dão a impressão fantástica de que se olharmos de perto, vão começar a se mexer, nos chamar para dançar. Registro mais preciso do universo do samba carioca do que qualquer historiador já fez.
Para fazer samba não basta ser dos prazeres, tem que ser entregue às dores, pois elas também dão riqueza. Para pintar, é preciso às vezes só uns olhos espertos, cheios de encanto pelo o que batuca e dança. Heitor dos Prazeres viveu a vida do confete levado pelo vento ao fim do carnaval, que se dissolve na poça, mas que renasce, sempre, fênix do molejo. Porque o samba não tem morte, e quem viveu nele também não.
Texto da escritora convidada, Cecília Garcia, apaixonada, como nós, pelas criações das almas inspiradoras. Obrigada, Cecília.
(A pesquisa deste tema recebeu apoio da Farm que arcou com os custos de viagem e hospedagem para imersão local no Rio de Janeiro. Obrigada, Farm).
—
Curadoria e pesquisa: Ana Luiza Gomes.