E agora, o que escrevo sobre farofa?
(Peguei uma almofada de chita do sofá, dois livros de Câmara Cascudo, um pote de geléia de jabuticaba e um taco de queijo canastra pra tirar o gosto do café da tarde. Sentei-me em minha rede amarela, bem no meio da sala de jantar. Coloquei um forró instrumental pra ouvir.)
Em quase todas as refeições de minha vida, digo a frase: “eu não como arroz, muito obrigada”. Nos almoços de domingo preparados por amigos e suas famílias. Nas minhas andanças e hospedagens nas casas pelo interior. Quando sou apresentada para as sogras. Provavelmente essas são as situações nas quais tenho mais cuidado para dizer essa simples sequência de palavras sem que pareça uma ofensa: recusar um prato preparado por um mineiro, por um anfitrião ou pela mãe de um namorado… coisa grave!
_ Mas o que você come com feijoada? Farinha.
_ E com a carne do churrasco? Farofa.
_ E com o resto do almoço, na hora do jantar? Farinha.
_ E com a galinhada? Farofa.
_ Com salpicão? Farinha.
_ Vinagrete? Farofa.
_ Se a sobremesa é arroz doce? Raspas de rapadura com uma colher, de farinha.
Com o feijão da tia. Com a gordurinha da panela de carne. Com o peixe frito.
E os intelectuais com bocas de risoto e vinho. E os alternativos entre bolinhos de arroz e cervejas importadas. Eles provocam: mas não é incoerente que logo você, Mayra – por causa de Darcy -, não coma feijão com arroz?
_ Pois é. _ Minha resposta favorita até então. Quase sempre dita com a boca cheia de farofa. Com cara de “desculpe”, mas com a leveza libertadora de quem, ao ter o ponto fraco desmascarado, era agora aceita entre o grupo dos que podiam errar.
(O binômio feijão-e-farinha. Página 433. Capítulo II, Cozinha Brasileira. Bloco II.2, Elementos Básicos. História da Alimentação Brasileira, Luís da Câmara Cascudo.)
Foi a página que eu abri. Eu sempre soube que a farinha veio primeiro, eu sempre soube que a combinação original é feijão com farinha.
Ainda assim, nunca tinha me ocorrido retomar esse fato histórico e esse alimento importantíssimo como resposta a quem questionava a brasilidade de minhas decisões alimentares.
Como se também tivesse esquecido da cunhã nas Casas de Farinha. Como se ainda não percebesse que a única coisa que delimita o brasileiro é a presença da liga – de arroz, farinha, chimarrão, ginga, gambiarra, olhar ou sorriso – que aproxima tudo quanto é mistura que estiver por perto.
(Pra eu ficar leve agora, nem Dominguinhos e sua sanfona. Mais valia estar no quintal de meu avô vendo ele preparar paçoca de carne seca para a farofa de andu. Só teria sossego se pudesse agora mesmo falar sobre isso com meu pai na mesa da varanda de sua casa. Com o prato de vidro marrom – cheio de farinha branca do sertão, com pedaços requentados da carne de panela do almoço – fazendo companhia aos nossos copos… testemunha de nossos papos.)
Quando me provocarem, o que eu vou dizer no boteco amanhã?
(Por Mayra Fonseca. Imagem da obra Cena de Mercado, da Djanira. A pesquisa deste tema foi feita em parceria com A Cozinha de Matilde.)